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PORTE ABACAXI, O PORTE DO ATIRADOR ESPORTIVO

por Ricardo M. Andrade
14 Minutos de leitura
atirador esportivo

UMA EXPLOSÃO DE NOVOS CACs! Assim podemos falar do fenômeno que vem acontecendo nos últimos 4 anos no Brasil. Em busca de uma maneira mais fácil e menos errada de portar suas armas de fogo, cidadãos comuns vem procurando clubes de tiro e despachantes para se tornarem CACs (Caçador, Atirador Esportivo e Colecionador). Alguns desses clubes e despachantes inclusive vendem o CR (Certificado de Registro) como porte de arma e não é difícil encontrar anúncios desse tipo nas redes sociais. Mas afinal de contas, quem tem procurado o CR para essa finalidade, está errado?

O CRESCIMENTO NO NÚMERO DE CACs

No fatídico e longínquo ano de 2003, ano em que o chamado Estatuto do Desarmamento foi estabelecido, o Exército Brasileiro emitiu no Brasil inteiro somente 503 CRs de Atirador Esportivo. Em 2004, muito provavelmente por conta das mudanças na legislação, o Exército emitiu 4131 CRs em todo o ano. E esse número até 2015 não aumentou muito, com uma média de 6243 CRs expedidos até 2015 e apresentando a maior alta em 2010 com 8153 CRs emitidos.

Em 2016 tivemos um aumento de literalmente 197,77%, sendo expedidos 19.361 CRs de atirador esportivo e nos anos seguintes tivemos uma crescente, principalmente em 2017, onde foram emitidos 32.424 CRs, um aumento de 67,47% em relação ao ano anterior. No ano de 2018 foram emitidos 46.774 CRs, 72.671 em 2019 e até agosto deste ano tínhamos cerca de 48.466 CRs emitidos, possibilitando que fechemos o ano com um número semelhante ao de 2019, onde tivemos mais CRs emitidos do que toda a somatório dos números de 2003 a 2015.

Quando comparamos o número de CRs de atirador esportivo expedidos com o número de armas registradas no SINARM, vemos que há um crescimento diferente, além de ter menos armas registradas neste sistema o crescimento é exponencial e se torna vertiginoso somente entre 2019 e 2020. Enquanto no SIGMA, temos uma alta no crescimento já em 2016, não só com o aumento no número de atiradores esportivos, mas consequentemente com o número de armas registradas no SIGMA.

Mas o que causou este aumento repentino no número de atiradores esportivos no Brasil? Será que temos mais desportistas do que nunca neste esporte olímpico tão mal visto pela mídia Brasileira e por alguns setores da sociedade?

O TIRO ESPORTIVO

Até então o tiro esportivo era visto como algo extremamente elitizado e difícil de conseguir entrar. As taxas para participar de competições e poder exercer o “papel” de C.A.C sempre foram caras e o atirador que quisesse suas guias de tráfego ou as armas dos então calibres restritos ou que quisessem comprar mais do que duas armas de calibre permitido eram literalmente obrigados a pagar altíssimos preços para os clubes de tiro e federações/confederações do desporto. Algumas das quais, por muitos anos, lutaram apenas por seus próprios interesses e deixou o atirador esportivo de lado.

Algumas entidades de tiro, que inclusive faziam parte do Conselho Consultivo da DFPC, chegaram ao cúmulo de sugerir à oficiais do COLOG que regulamentassem o porte de trânsito somente para os CACs Nível III (atiradores federados e/ou confederados e que participavam de competições nacionais e estaduais)! Um total absurdo e falta de respeito com qualquer um que pratique o esporte, formal ou informalmente.

Com a mudança da legislação, liberação de novos calibres e com a redução da vinculação das confederações ao atirador esportivo, a mística do tiro esportivo caiu. Ficou mais fácil ser um atirador esportivo e também menos caro. Vejam que começamos a ter um aumento no número de clubes de tiro também em 2016, quando o esporte começou a ficar mais viável.

Foram autorizados em 2003 somente 17 clubes de tiro em todo o Brasil e esse número cresceu para 191 em 2004, em 2005 foram concedidos 139 CRs para clubes de tiro, em 2006 esse número caiu para 50 e até 2015 foram números cada vez menores de CRs expedidos. O maior pico ocorreu em  2014, com 63 CRs expedidos, mas esse número caiu para 40 no ano seguinte e em 2016 aumentou para 69. Já em 2017, os números duplicaram com 115 CRs liberados, aumentando para 163, 232 e esse ano devemos fechar com um número próximo a 273.

PORTE ABACAXI, O PORTE DOS CACs

Mas foi em 2017 quando ocorreu a primeira regulamentação do Art. 9º do Estatuto do Desarmamento: a portaria 28 COLOG, de 14 de Março de 2017 autorizando pela primeira vez (mesmo que com o texto redigido errado) que o atirador esportivo portasse uma arma de fogo do seu acervo de Tiro Desportivo para defesa “do seu acervo.”

Art. 135-A. Fica autorizado o transporte de uma arma de porte, do acervo de tiro desportivo, municiada, nos deslocamentos do local de guarda do acervo para os locais de competição e/ou treinamento.

Baseados nessa portaria, atiradores de todo o Brasil passaram a portar suas armas não somente em seus deslocamentos para treinamento e/ou competição, mas principalmente no dia a dia para sua legitima defesa, ocasionando um crescimento de 67,47% no número de Atiradores Esportivos autorizados pelo Exército nesse mesmo ano, e um aumento de mais 44,26% no ano seguinte. Se tornar um atirador esportivo para ter O “porte abacaxi”, como ficou conhecido o porte de trânsito, passou a ser um chamariz para quem queria portar sua arma de fogo, mas era indeferido pela Polícia Federal.

atirador esportivo

Essa opção se tornou muito mais viável para quem desejava portar sua arma, apesar de termos uma aumento até substancial no número de portes de arma expedidos nos últimos anos, o número total ainda é ínfimo quando comparado com o número de atiradores esportivos ativos hoje no Brasil, cerca de 251.103, de acordo com dados fornecidos pelo Comando do Exército. A alta nos portes se deve também por conta de um novo entendimento da DARM que aconselha conceder porte de arma para proprietários de lojas de arma, clubes de tiro e Instrutores de Armamento e Tiro credenciados.

Sobre o “Porte Abacaxi”, procuramos a opinião do Dr. Flavio Cesar de Almeida Santos, Promotor de Justiça Criminal vinculado ao Ministério Público de Minas Gerais e também atirador esportivo vinculado à 4ª RM:

Na verdade, a norma do EB vale-se de conceitos abertos e indeterminados, além de não contemplar situações corriqueiras que trazem os dissabores noticiados, já que as polícias, que também, além de desconhecerem as normas pertinentes ao esporte, não possuem um fluxo ajustado à própria normatização e fiscalização do EB. 

Assim, por exemplo, ‘estar em deslocamento’ abrange todo o percurso, incluindo para locais longínquos, que atravessam cidades, etc. Transferindo “interpretações” acerca das situações como “parar para almoçar, jantar, aguardar fluxo de trânsito, etc.”. Não há, outrossim, sequer inquirição sobre “percurso”, podendo ser ele o mais rápido, o mais curto e o mais cômodo, gerando, somente nisso, interpretações ao sabor do policial, gerando, desta forma, dissabores indeléveis. Por outro lado, não pode, absolutamente, o CAC se valer do porte de trânsito para o porte de segurança desvinculado do esporte (quando em deslocamento para treinos e competições), embora o fundamento seja ontologicamente idêntico. Trata-se de infração grave passível de censura cara ao CAC, nos termos do decreto 10.030\19.

A análise de circunstâncias é que ensejará ou não a regularidade do porte de trânsito. A questão é tão insegura, que há quem entenda que, por simples interpretação do policial, estaria o CAC. “fora do trajeto” e, assim, também crime previsto na lei 10.826\03. No entanto, a análise do fato, frente ao que há, hoje, na dogmática penal, é a verificação de circunstâncias que ensejarão ou não à concretização do tipo penal. O CAC não pode PORTAR como arma de porte (para defesa pessoal), que é previsto e concedido pela Polícia Federal, a sua arma do SIGMA, mas tão somente em razão do porte de trânsito, no deslocamento para o treino ou competição.

Quando questionado sobre a prisão de atiradores ao redor do país, ele diz:

Com relação às prisões de CACs Brasil afora, deve ser analisado caso a caso. Contudo, uma coisa é certa: se a prisão decorre tão simplesmente da interpretação acerca de trajeto, deslocamento, etc., são, ao meu ver, irregulares e causam, sem dúvida, prejuízos indeléveis à vida do CAC e de sua família.

É por essas e outras que, em um artigo que escrevi sobre o porte de trânsito e crimes eventualmente praticados por CACs, há a previsão de um fluxo, observando diretrizes objetivas, para que não haja omissão na atuação da fiscalização, abuso do direito de porte e impunidade para quem comete crime.

Vejam quão delicada é a situação. Como disse o Promotor, basta o entendimento da autoridade policial sobre o trajeto para transformar uma situação corriqueira do dia a dia em um crime. Mesmo assim, mesmo com toda essa insegurança jurídica, se tonar um atirador esportivo ainda é, infelizmente, a única opção para o cidadão comum que quer portar sua arma “legalmente”. Em 2019 a legislação mudou novamente e ficou muito mais claro, pois o artigo de que trata o porte de trânsito é tácito, dizendo que a arma pode ser portada “municiada, alimentada e carregada, em pronto uso”, acabando com quaisquer interpretações que a autoridade policial poderia ter, ao se deparar com um atirador esportivo armado com o carregador cheio e munição na câmara.

A CULPA É DO ESTATUTO, NUNCA DOS CACs

Essa crescente no tiro esportivo mostra que, cansados da legislação vigente, em vigor há 17 anos e ineficaz desde sempre, os cidadãos tem tirado o CR não para a prática recorrente do esporte, mas sim para portar sua arma de fogo para defesa pessoal com a prerrogativa de estarem sempre em deslocamento para algum local de treinamento ou competição, já que, por conta da proibição do porte instituído pelo Estatuto do Desarmamento, não conseguem o fazer da forma como deveria. A legislação empurra pessoas de bem para a vala da ilegalidade.

E por isso essas pessoas não devem ser julgadas ou mal vistas pela comunidade do tiro. Uma vez que estão ali, única e exclusivamente, porque a legislação os empurrou para aquele local. Para fugir da ilegalidade, procuram a forma menos errada ou menos burocrática de portar sua arma de fogo, de proteger sua vida, ou seja, se tornam um atirador esportivo, sem praticar de fato o esporte. Esse “atirador esportivo” deve então ser bem instruído por clubes de tiro e despachantes sobre a realidade da legislação vigente. E, principalmente, deve ser bem treinado, para não morrer com a arma na mão e não matar alguém por acidente.

A elite do tiro, é claro, se incomoda com esse crescimento, afinal agora o atirador que usa uma Tanfoglio, Beretta e Perazzi, tem que dividir espaço com o cidadão que tirou o CR e se tornou um atirador esportivo e vai adquirir somente uma G2C em toda sua vida no tiro. E esse incomodo faz com que essas pessoas, por muitas vezes, peçam mais restrições, enquanto, na verdade, deveriam pedir menos restrições para todos, para que tirem o CR somente quem quer praticar o esporte, e quem queira portar, consiga seu porte de arma da maneira correta. O inimigo do CAC acaba sendo o próprio CAC.

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